Friday, August 18, 2006

como me tornei um estúpido (trecho), de Martin Page

“Há pessoas para quem as melhores coisas não funcionam. Elas podem estar vestidas com uma roupa de caxemira, que terão sempre a aparência de mendigos; podem ser ricas, mas serão endividadas; ser grandes, mas nulidades no basquete. Eu hoje me dou conta de que pertenço à espécie das que não conseguem beneficiar-se das suas vantagens, aquelas para quem tais vantagens chegam a ser inconvenientes.

“A verdade sai da boca das crianças. Na escola primária, ser inteligente resultava num insulto infame; quando crescemos, ser um intelectual passa a ser quase uma qualidade. Mas isso é uma mentira: a inteligência é uma tara. Assim como os vivos sabem que vão morrer, e como os mortos não sabem nada, penso que ser inteligente é pior que ser asno, porque o asno não se dá conta disso, ao passo que qualquer inteligente, ainda que humilde e modesto, o sabe forçosamente.

“Está escrito no Eclesiastes que ‘quem tem a sua ciência aumentada, este também tem aumentada a sua dor’, mas, não tendo tido jamais a felicidade de freqüentar o catecismo com as outras crianças, não fui prevenido dos perigos do estudo. Os cristãos têm a sorte, quando jovens, de ser postos em guarda contra o perigo da inteligência; por toda a vida saberão distanciar-se dela. Bem-aventurados os pobres de espírito.

“Os que pensam que a inteligência tem alguma nobreza não podem, certamente, dar-se conta de que ela não passa de maldição. Os que me cercam, os meus colegas de classe, os meus professores, todo o mundo sempre me julgou inteligente. Eu nunca compreendi bem por que nem como eles chegavam a este veredicto acerca da minha pessoa. Eu freqüentemente sofria esse racismo positivo da parte dos que confundem a aparência de inteligência com inteligência, e nos condenam, com um preconceito falsamente favorável, a encarnar uma figura de autoridade. Assim como a mídia se extasia com um jovem ou uma jovem dotados de beleza maior, assim, para humilhação silenciosa dos menos dotados pela natureza, eu era a criatura inteligente e culta. Como eu detestava aquelas sessões em que participava, a contragosto, para magoar, para rebaixar os rapazes e moças considerados menos brilhantes!

“Eu jamais fui esportista; as últimas competições importantes que fatigaram os meus músculos foram os campeonatos de bola de gude na escola primária, no pátio de recreio. Os meus braços finos, o meu fôlego curto, as minhas pernas lentas não me permitiam fazer os esforços necessários para acertar numa bola com eficácia; eu tinha força somente para explorar o mundo com o meu espírito. Demasiado medíocre para o esporte, só me restavam os neurônios para inventar jogos de bola de gude. A inteligência era uma saída.

“A inteligência é um erro da evolução. No tempo dos primeiros homens pré-históricos, posso imaginar perfeitamente bem, no seio de uma pequena tribo, todos os meninos correndo no mato, perseguindo os lagartos, colhendo bagas para o jantar; e pouco a pouco, em contato com adultos, aprendendo a ser homens e mulheres completos: caçadores, coletores, pescadores, curtidores... Mas, olhando mais atentamente a vida desta tribo, percebe-se que algumas crianças não participam das atividades do grupo: elas permanecem perto do fogo, protegidas no interior da caverna. Elas jamais saberiam se defender dos tigres-dentes-de-sabre, nem poderiam caçar; entregues a si mesmas, não sobreviveriam por uma noite. Se elas passam os dias sem fazer nada, tal não se dá por indolência, não, elas bem que gostariam de dar cambalhotas com os companheiros, mas não o podem. Ao pô-las no mundo, a natureza manquejou. Nesta tribo, há uma pequena cega, um rapaz coxo, um rapaz desajeitado e distraído... Assim, eles permanecem no acampamento o dia todo, e, como não têm nada para fazer e como os videogames ainda não tinham sido inventados, são obrigados a refletir e a deixar deambular os seus pensamentos. E passam o tempo a pensar, a imaginar histórias e invenções. Eis como nasceu a civilização: porque crianças com defeitos não tinham nada mais para fazer. Se a natureza não estropiasse ninguém, se o molde fosse sempre sem falha, a humanidade teria permanecido numa espécie de proto-humanidade, feliz, sem nenhum pensamento de progresso, vivendo muitíssimo bem sem Prozac, sem preservativos nem aparelho de DVD dolby digital.

“Ser curioso, querer compreender a natureza e os homens, descobrir as artes deveria ser a tendência de todo e qualquer espírito. Mas, se assim fosse, com a atual organização do trabalho, o mundo deixaria de girar, simplesmente porque aquilo demanda tempo e desenvolve o espírito crítico. Ninguém trabalharia. Eis por que os homens têm gostos e desgostos, coisas que os interessam e coisas que não os interessam - porque, se assim não fosse, não haveria sociedade. Os que se interessam demasiadamente pelas coisas, que se interessam até por assuntos que não os interessariam a priori - e que querem compreender as razões do seu desinteresse - pagam o preço disso com certa solidão. Para escapar a esse ostracismo, é necessário dotar- se de uma inteligência que tem uma função, que serve a uma ciência ou a uma causa, a um oficio; simplesmente, uma inteligência que serve para algo. A minha suposta inteligência, demasiado independente, não serve para nada, ou seja, ela não pode ser recuperada para ser empregada pela universidade, por uma empresa, por um jornal ou por um escritório de advocacia.

“Eu tenho a maldição da razão; sou pobre, solteiro, depressivo. Há meses reflito sobre a doença de refletir demasiadamente e estabeleci com toda a certeza a correlação entre a minha infelicidade e a incontinência da minha razão. Pensar, tentar compreender nunca me trouxe nenhum beneficio, mas, ao contrário, sempre atuou contra mim. Refletir não é uma operação natural e fere, como se revelasse cacos de garrafa e arames farpados misturados com o ar. Eu não consigo deter o meu cérebro, diminuir o seu ritmo. Sinto-me como uma locomotiva, uma velha locomotiva que se precipita nos trilhos e que não poderá jamais parar, porque o combustível que lhe dá a sua potência vertiginosa, o seu carvão, é o mundo. Tudo o que vejo, sinto, escuto se engolfa no forno do meu espírito e o impele e faz funcionar a pleno vapor. Tentar compreender é um suicídio social, e isso significa já não desfrutar a vida sem sentir-se, a contragosto, e ao mesmo tempo, uma ave de rapina e um abutre que despedaça os seus objetos de estudo. Freqüentemente matamos aquilo que buscamos compreender porque, como para o estudante de medicina, não há verdadeiro conhecimento sem dissecção: descobrem-se as veias e a circulação do sangue, a organização do esqueleto, os nervos, o funcionamento íntimo do corpo. E, numa noite de terror, nos encontramos numa cripta úmida e sombria, com um escalpelo na mão, todo manchado de sangue, sofrendo constantes náuseas, com um cadáver frio e informe sobre uma mesa de metal. Depois, pode-se sempre tentar ser um professor Frankenstein e reunir tudo isso para fazer dele um ser vivo, mas sempre se corre o risco de fabricar um monstro assassino. Eu vivi demasiadamente nos necrotérios; hoje, sinto aproximar-se o perigo do cinismo, do amargor e da infinita tristeza; rapidamente nos tornamos dotados para a infelicidade. Não é possível viver demasiadamente consciente, demasiadamente pensante. Aliás, observemos a natureza: tudo o que vive muito e contente não é inteligente. As tartarugas vivem séculos, a água é imortal, e Milton Friedman está sempre vivo. Na natureza, a consciência é a exceção; pode-se até postular que ela é um acidente, uma vez que ela não assegura nenhuma superioridade, nenhuma longevidade particular. No quadro da evolução das espécies, ela não é sinal de uma melhor adaptação. São os insetos que, em idade, em número e em território ocupado, são os verdadeiros mestres do planeta. A organização social das formigas, por exemplo, é muito mais bem-sucedida do que jamais será a nossa e nenhuma formiga tem cátedra na Sorbonne.

“Todo o mundo tem coisas para dizer acerca das mulheres, dos homens, dos policiais, dos assassinos. Nós generalizamos a partir da nossa própria experiência, do que nos cabe viver, do que se pode compreender com os esquálidos recursos dos nossos feixes neuronais e segundo a perspectiva da nossa visão. E uma facilidade que permite pensar rapidamente, julgar e posicionar-se. Isso não tem valor em si, são sinais, pequenas bandeiras que todos agitamos. E todo o mundo defende a verdade das suas vantagens, do seu sexo, da sua fortuna.

“Em um debate, as generalidades oferecem a vantagem da simplicidade e da fluidez dos raciocínios, da sua compreensão fácil, e, por conseguinte, de maior impacto sobre os ouvintes. Para traduzir isso em linguagem matemática, as discussões baseadas em generalidades são adições, operações simples, que, por sua evidência, fazem crer em sua pertinência. Ao passo que uma discussão séria daria antes a idéia de uma seqüência de inequações não raro desconhecidas, de integrais e bolinhas com nomes complexos.

“Uma pessoa sábia terá sempre, numa discussão, a impressão de simplificar, e o seu único desejo seria cortar, colar asteriscos a determinadas palavras, pôr notas de rodapé e comentários em fim de livro para exprimir verdadeiramente o seu pensamento. Mas, numa conversa a um canto de um corredor, num jantar animado ou nas páginas de um jornal, isso é absolutamente impossível: não se trata, então, de rigor, de objetividade, de imparcialidade, de honestidade. A virtude é um handicap retórico e não é eficaz num debate. Alguns espíritos brilhantes, vendo a vacuidade necessária de toda e qualquer discussão, têm optado pela esperteza e sugerem a complexidade pelo paradoxo e por um humor distanciado. Por que não se, além do mais, tudo não passa de um meio de sobreviver?

“Os homens simplificam o mundo pela linguagem e pelo pensamento, e assim eles têm certezas; e ter certezas é a mais poderosa volúpia neste mundo, muito mais poderosa que o dinheiro, o sexo e o poder reunidos.A renúncia a uma verdadeira inteligência é o preço a pagar por ter certezas, e é sempre uma reserva invisível no banco da nossa consciência. A esse respeito, eu prefiro ainda os que não se cobrem com o manto da razão e afirmam a ficção da sua crença. Ou seja, um crente em que a sua fé não seja nada além da crença e não uma presunção sobre a verdade das coisas reais.

“Há um provérbio chinês que diz, por alto, que um peixe nunca sabe quando urina. Isso se aplica perfeitamente aos intelectuais. O intelectual está persuadido de que é inteligente, porque se serve do seu cérebro. O pedreiro se serve das suas mãos, mas tem um cérebro que lhe pode dizer: ‘Ei! essa parede não está reta, e, além disso, você se esqueceu de pôr cimento entre os tijolos.’ Há um vaivém entre o seu trabalho e a sua razão. O intelectual, ao trabalhar com a sua razão, não possui esse vai-e-vem, as suas mãos não se animam a dizer-lhe: ‘Ei, meu caro, você está enganado! A Terra é redonda.’ Falta ao intelectual esse retorno, razão por que ele se julga capaz de ter um parecer esclarecido a respeito de todos os assuntos. O intelectual é como um pianista que, por utilizar as mãos com virtuosidade, pensa ter aptidão para ser, naturalmente, jogador de pôquer, boxeador, neurocirurgião e pintor.

“Evidentemente, os intelectuais não são os únicos a quem compete a inteligência. Em geral, quando alguém começa por dizer ‘Não é para ser demagógico, não, mas...’, é efetivamente para ser demagógico. Por isso, eu não sei dizer muito bem o que poderia ser interpretado como condescendência. Estou convencido de que a inteligência é uma virtude compartilhada pelo conjunto da população, sem distinção social: há igual porcentagem de pessoas inteligentes entre os professores de história e os marinheiros-pescadores bretões, entre os escritores e os datilógrafos... Isso o sei pela minha própria experiência, à força de me aproximar de brain-builders, pensadores e professores, intelectuais idiotas e, ao mesmo tempo, de pessoas normais, inteligentes sem certificado de inteligência, sem a aura institucional. Eu não posso dizer outra coisa. E tão contestável quão impossível é um estudo científico. Encontrar alguém inteligente e sensato não é função do diploma; não há teste de Q.I. para revelar o que se poderia chamar bom senso. Eu penso e repenso no que dizia Michael Herr, roteirista de Nascido para matar, no seu magnífico livro sobre Kubrick: ‘A estupidez das pessoas não deriva da sua falta de inteligência, mas da sua falta de coragem

“Uma coisa que se pode admitir é que, freqüentar grandes obras, servir-se do seu próprio espírito, ler livros de gênios não asseguram a ninguém inteligência, mas tornam isso provável. Naturalmente, há pessoas que terão lido Freud, Platão que saberão fazer trocadilhos com os quarks e ver a diferença entre os falcões-peregrinos e um peneireiro, e que, todavia, serão rematados imbecis. Não obstante, potencialmente, estando em contato com uma multidão de estímulos e deixando o seu espírito freqüentar uma atmosfera enriquecedora, a inteligência encontra terreno favorável para o seu desenvolvimento, exatamente da mesma maneira que uma doença. Pois a inteligência é uma doença.”

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