A célebre carta de Zola, J’Accuse, com o subtítulo Carta a Félix Faure (Presidente da República na época), publicada no jornal literário L‘Aurore, em 13 de Janeiro de 1898, fez com que vários escritores assinassem o "Manifesto dos Intelectuais", documento que além de pedir a reparação de uma injustiça, também fixava a idéia do intelectual participante e ativo dos conflitos sociais e políticos. Logo em seguida veio a resposta, uma campanha de descrédito do movimento pelos chamados Antidreyfusards (os que pretendiam condenar Alfred Dreyfus), com o intuito de ridicularizá-lo. Eram sobretudo nacionalistas, politicamente adeptos da monarquia, de valores conservadores católicos, anti-democráticos, autoritaristas e militaristas. Valores estes muito mais próximos da chamada direita do que da chamada esquerda, que procuravam e procuram mercantilizar um mundo onde só cabia (ou cabe) seus interesses.
Por que tudo isso? Porque corre na internet uma coleção de fragmentos do discurso de posse de Nicolas Sarkozy, que dá destaque e privilegia certas afirmações oportunamente encadeadas para fazer referência a políticos e intelectuais de esquerda. Puro proselitismo. Os franceses escolheram um conservador, Nicolas Sarkozy em detrimento de um socialista, Ségolène Royal. Quer mais?
Diferentemente do que o texto que circula por aí quer dar a entender, quando Sarkozy diz que "A crise da cultura do trabalho é uma crise moral. Vou reabilitar o trabalho.", na verdade ele apenas cortou o sobre-imposto de quem faz horas extras, ou seja, quem quiser trabalhar mais do que as 35 horas semanais, já não paga mais por isso. Mas, como prega a boa cartilha política - independente da tendência, se mais à direita ou mais à esquerda - tudo tem um preço, e Sarkjozy teve que "comprar" a paz com os sindicatos comprometendo uma outra promessa de oferta mínima nos transporte público em casos de greves. Ou seja, Sarkozy, que se diz o "candidato do povo" e da "ruptura tranqüila", também pratica o famoso "toma-lá-dá-cá".
O autor da "colagem" resolve, num ímpeto de coragem, expressar uma fagulha do que se poderia chamar de pensamento, após informar que "... o texto é (parte, ele esqueceu de dizer que é parte...) do discurso de posse do presidente francês Nicolas Sarkozy", emenda uma "opinião", achando que o texto estaria "... dando um recado aos que se acostumaram a viver como proxenetas de um discurso esquerdista e que sempre alimentou aqueles que não sabem pensar por conta própria." Isso faz-me pensar que a "direita" não tem gente estúpida que apenas copia textos e idéias. Que iluminados!
Como ainda é possível aos homens de pensamento atuarem na defesa de causas em prol das liberdades individuais e coletivas quando estas se encontram ameaçadas pelo aventureirismo político? A abrangência do pensamento não pode, jamais, ser dado pela subjetividade de quem discorda ou tem dificuldade de aceitar e considerar outras opiniões. Filósofos, sociólogos, economistas e outras figuras chamadas "intelectuais" já denunciaram, há tempos, a banalidade da “lógica binária” do "Esquerda x Direita". É simplório e oportunista. Norberto Bobbio já apontou o embaçamento desta linha divisória em seu "Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política", Francis Fukuyama determinou "O Fim da História", e ainda temos John Kenneth Galbraith e Roberto Campos, Karl Marx e Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Lula... vamos por tudo isso no mesmo caldeirão! Também Cuba, China e (a antiga) URSS no mesmo caldeirão! SOCORRO!!! DE CALDEIRÃO BASTA O DO HUCK!!!
E o desditoso arremata:
"Até parece que Sarkozy falou para os nossos intelectuais e para a esquerda tupiniquim. O intelectual brasileiro esquerdista ama Cuba e fala da maravilha da ilha de Dr. Castro, mas o apartamento para férias está em Paris. Cuba só em audiovisual."
Uma coisa é estudar Cuba, ir a Cuba, entender Cuba. Outra é perguntar sobre Cuba para cubanos que fugiram a nado para Miami. E outra ainda é colher declarações de simpatizantes da chamada esquerda e estereotipar num discurso hipócrita onde confunde o fruto do trabalho de pessoas físicas com a benesse de quem se apropria de bens públicos ou alheios. O que há de mal ou de incongruente em apoiar certas políticas cubanas - saúde e educação de qualidade e para todos, por exemplo - com tirar férias em Paris? A Cuba audiovisual que o desinfeliz alude é esta própria que ele demonstra conhecer: nem com toda a devida carga de desinformação, preconceito, encurtamento e incompetência intelectual que o extrato apresenta.
P.S.: Sobre o termo tupiniquim, certas pessoas deveriam tomar cuidado ao usá-lo: na afetação de soar progressista acaba por desmerecer os primeiros habitantes do país, grupo indígena da família lingüística tupi-guarani, quase exterminados pelo homem branco europeu, o mesmo que conduz e dita a linha de pensamento moderno.
(inspired by j. da p.)
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