Wednesday, August 10, 2022

O Livro de Reclamações

... ou As Aventuras de Josef K. em Portugal
Bureaucratic Landscape by Curt Frankenstein
Um amigo meu que "está a morar" em Portugal me conta que dia desses sentiu-se dentro d'O Processo, romance de Franz Kafka sobre um cidadão que é detido e acusado por uma autoridade desconhecida sem saber qual o crime e a razão do processo. Conta-me ele que na manhã de uma segunda-feira como outra qualquer, recebeu uma chamada da AT (autoridade Tributária) em relação a uma encomenda (um celular comprado pela internet) confiscada na alfândega! Ao perguntar o motivo da retenção, a funcionária disse:
-- O senhor possui uma dívida com o IRS (imposto de renda).
-- Uma dívida? Do que se trata esta dívida?
-- Não sei dos detalhes, mas uma comunicação foi-lhe enviada.
-- Mas não recebi nada...
-- Isto não é problema meu, senhor. Foi enviado pelo CTT (correios).
-- Mas eu não recebi nada do CTT...
-- Pois isso não é problema meu - o senhor é que vá lá ter com o CTT!
Disse-me ele que ao entrar no Portal das Finanças, em sua página de contribuinte, deparou-se com um aviso em vermelho, citando a tal dívida, mas ainda sem explicação do que se tratava. Apenas "Dívida do IRS". Jurou de pé-junto que não estava lá o aviso na sexta-feira anterior, já que verificava o portal pelo menos 1 vez por semana.

Indignado mas controlado - as aulinhas de yoga têm ajudado, me diz - comenta, com cautela e educação, que tampouco é problema dele. Se as Autoridades Tributárias mandaram uma correspondência para ele, e essa correspondência não chegou, as Autoridades Tributárias é que deveria ir "lá ter com o CTT".

Ela aconselhou que ele fosse à agência das Autoridades Tributárias para se informar melhor, e desligou!

Como bom cidadão, assim o fez. Chegando lá, disposto a pagar, foi muito bem atendido. Um funcionário até explicou do que se tratava a dívida - um erro da esposa no portal. Satisfeito, deu baixa na dívida e tomou conhecimento de que a encomenda seria liberada. Foi para casa feliz!

Dia seguinte, ansioso que estava para receber o celular novo, parecia-lhe que as horas se arrastavam. Deu meio-dia e nada do tal CTT. Ligou. Calhou de atender a mesma funcionária que havia lhe ligado no dia anterior.
-- Bom dia senhora. Ligo para saber da minha encomenda.
-- Sua encomenda foi devolvida para a transportadora e o senhor tem que entrar em contato com eles.
-- ... Mas... estive aí ontem e paguei a dívida! Como é que a encomenda foi devolvida para a transportadora? Qual transportadora?
-- Como o senhor disse que não iria pagar a encomenda teve que voltar, pois não pode ficar aqui.
-- Eu não disse que não iria pagar, tanto que fui até a agência como a senhora me recomendou, e lá esclareci minha dúvida e paguei a dívida.
-- Mas agora já se foi o pacote, tens que falar com a transportadora - arremata a funcionária, já querendo desligar.
É quando, já sonoramente irritado, solta, "Mas isto não é possível! A senhora tem aí o Livro de Reclamações?"

O Livro de Reclamações! Já ouvira falar... parecia uma palavra mágica! Uma senha que desmantelava o mau humor, acabava com a deseducação e aniquilava impaciências!
-- O Livro de Reclamações? Sim... temos... mas está aqui na agência...
-- Pois não tem problema - falou firme. Passo aí hoje mesmo para assiná-lo!
Na verdade ele nem sabia do que se tratava o tal do Livro de Reclamações! Tampouco o que fazer com ele!
-- Ora, meu senhor, nem é para tanto. Deixe-me ver aqui como podemos fazer... O senhor sabe qual é a transportadora? Se DHL ou UPS? Pois nem é preciso, vou já aqui encaminhar um email para ambas, citar o número do pacote e pedir para que o enviem para vossa morada... tenho aqui seu email e já mando-lhe copiado na correspondência... Costumam ser rápidos nesses negócios... Como lhe parece?
Pareceu um milagre!

Mesmo assim, tentou reclamar: "cobrança coerciva de imposto sem notificação prévia", bradou uma vez; "tratamento arbitrário por funcionário", bradou uma segunda vez, mas seu brado deu no vazio. Tudo o que conseguiu foi assinar o tal do Livro das Reclamações. Nele, enumerou:
- Não me foi dado o benefício de ser notificado sobre a dívida;
- Senti-me injustamente coagido a pagar uma dívida desconhecida através do confisco de um bem;
- Apreensão desnecessária e precipitada de um bem (ferramenta de trabalho), já que não havia a necessidade de coerção;
- Faltaram-me com o direito a um serviço de qualidade;
- Faltaram-me com o direito a ser informado de forma clara sobre os meus direitos e deveres tributários;
- Faltaram-me com o direito a ser assistido por profissional legalmente habilitado/a;
- Faltaram-me com o direito a ser informado sobre minha situação tributária;
- Faltaram-me com o direito a ser ouvido antes de qualquer decisão desfavorável;
- Fui caluniado.

O Estado burocrático é isto... um monstro invisível, pensei, com múltiplos tentáculos, com milhares de olhos, clínicos, atentos para a falha humana e para a falta do quadradinho no papelzinho, um resquícios inexplicável do período pré-digital da civilização. Esse Estado supremo e autoritário, um bocado vesgo, cego mesmo, para tantas coisas dO Capital (minha bagagem socialista falando mais alto) mas ao se tratar do cidadão comum, não se pode argumentar ou explicar - apenas obedecer.

Se o livro vai funcionar, isso ele ficou de me contar depois...

Thursday, July 28, 2022

De Embargos e Consumidores



Adam Smith, o grande economista e filósofo escocês, conhecido como pai da Economia e do Capitalismo, em seu livro "A Riqueza das Nações", de 1776, escreveu que as necessidades dos produtores deveriam ser consideradas apenas sob a ótica de atender as necessidades dos consumidores (o sublinhado é meu). Uma filosofia consistente com o conceito de marketing, mas em algum momento da história a ganância falou mais alto, e o mantra passou a ser identificar, antecipar e satisfazer as necessidades e desejos dos clientes.

Hoje em dia as organizações fazem de tudo para antecipar necessidades e desejos de consumidores em potencial, na tentativa de satisfazê-los de forma mais eficaz do que os concorrentes. E fazem isso usando uma das técnicas mais agressivas de todos os tempos, uma ferramenta de comunicação de marketing que emprega a distribuição de mensagens, tanto explícitas como subliminares, geralmente patrocinadas, com a desculpa de promover ou vender um produto, mas o intuito e de apreender a atenção, a vontade, o poder de decisão e quem sabe até a consciência do inadvertido alvo, deste mal universal destew século dos serviços pseudo-gratuitos... o ANÚNCIO!

Anúncios são uma praga, não importa qual! Pode-se argumentar que alguns anúncios são criativos e tal, quase "uma obra de arte" (sic), mas o problema não é só o conteúdo, ou se o anúncio é criativo ou não, nem mesmo importa qual produto está sendo anunciado... o problema é a privacidade. É o momento. Sem mencionar o custo social - anúncios falsos; anúncios direcionados a crianças; anúncios perversivos, que querem fazer você pensar que é o que não é, e etc, etc.

Lembro-me dos velhos tempos do telemarketing, quando costumávamos receber ligações aleatórias sobre produtos diferentes, promoções e várias "oportunidades imperdíveis", geralmente na hora do jantar! Lembro-me de meu pai uma vez, depois de dizer 2 ou 3 vezes que não estava interessado, sugeriu "Olha Fulano, por que você não me dá o número do seu telefone que eu ligo pra você quando você estiver jantando! O que acha?", E desligou o telefone!

Basta disso! Basta de panfletos indesejáveis na caixa de correio! Chega de e-mails desgraciosos, pop-ups invasivos enquanto navegamos pela internet, e o mais chato de todos, os anúncios intrusivos que são inseridos no meio dos vídeos do YouTube, e não apenas no início dos vídeo, o que já é chato pra cacete! Anúncios dos aplicativos de rádio da internet, que se declaram antes de iniciar o streaming da estação escoilhida... BASTA!

Não chegassem os anúncios que temos que engolir nos chamados "intervalos comerciais" - que só ali deviam existir! Anúncios não solicitados são como conselhos não-pedidos: ninguém os quer, ninguém os precisa!!!

Estas campanhas DEVERIAM estar causando efeito justamente oposto ao que almejam, e em vez de criar empatia com consumidores satisfeitos, vão acabar por gerar repulsa em uma legião de consumidores frustrados, que não têm muitas opções de como sair desse oceano de lixo e poluição visual, sonora e mental.

O que nós, consumidores, podemos fazer?

BANIR! BOICOTAR! EMBARGAR! Isso sim, é um embargo! Não o gás da Rússia!!!

Não compre nada de quem lhe meta um anúncio intruso na sua frente! Abaixo os anúncios indesejados e não solicitados! O consumidor tem o poder!

Sim... bem que poderíamos.

Sunday, May 23, 2021

Comida: Ciência da Felicidade?

ou Como Enganar-se Sem Culpa!


Pois é verdade: tem um cara chamado Dr. Psicólogo Fulano de Tal que está lançando um livro interessantíssimo - segundo ele mesmo - chamado The Science of Happiness... E ele se atreve a dizer que a COMIDA é o fator central de nossas vidas - portando, conclue, da felicidade!

Quê?!?

Mas a coisa continua com o entrevistador perguntando, ou melhor, implorando por afirmação, se é "OK" se matar de comer açucar e carbohidratos... "sabe, né, de vez em quando..." E o Dr. responde que... "Claro! É absolutamente normal (!!!), principalmente quando estamos no meio de uma pandemia!!!

Bem, para não dizer que não falei das flores, ele bem que disse uma ou duas coisas que se aproveite: que é importante comer pensando no intestino e que vegetarianismo não é saudável!

Monday, April 13, 2020

O Novo Consumidor

ou Não jogue seu lixo no meu quintal!

Adam Smith, o grande economista e filósofo escocês, conhecido como pai da Economia e do Capitalismo, em seu livro "A Riqueza das Nações", de 1776, escreveu que as necessidades dos produtores deveriam ser consideradas apenas sob a ótica de atender as necessidades dos consumidores (o sublinhado é meu). Uma filosofia consistente com o conceito de marketing, mas em algum momento da história a ganância falou mais alto, e o mantra passou a ser identificar, antecipar e satisfazer as necessidades e desejos dos clientes.

Hoje em dia as organizações fazem de tudo para antecipar necessidades e desejos de consumidores em potencial, na tentativa de satisfazê-los de forma mais eficaz do que os concorrentes. E fazem isso usando uma das técnicas mais agressivas de todos os tempos, uma ferramenta de comunicação de marketing que emprega a distribuição de mensagens patrocinadas com o intuito de promover ou vender um produto... o ANÚNCIO!

Anúncios são uma praga, não importa qual! Pode-se argumentar que alguns anúncios são criativos e tal, quase "uma obra de arte" (sic), mas o problema não é só o conteúdo, ou se o anúncio é criativo ou não, nem mesmo importa qual produto está sendo anunciado... o problema é a privacidade. É o momento. Sem mencionar o custo social - anúncios falsos; anúncios direcionados a crianças; anúncios persivos que querem fazer você pensar que é o que não é, e etc, etc.

Lembro-me dos velhos tempos do telemarketing, quando costumávamos receber ligações aleatórias sobre produtos diferentes, promoções e várias "oportunidades imperdíveis", geralmente na hora do jantar! Lembro-me de meu pai uma vez, depois de dizer 2 ou 3 vezes que não estava interessado, sugeriu "Olha Fulano, por que você não me dá o número do seu telefone que eu ligo pra você quando você estiver jantando! O que acha?", E desligou o telefone!

Basta disso! Basta de panfletos indesejáveis na caixa de correio! Chega de e-mails indesejados, pop-ups indesejados enquanto navega a internet, e o mais chato de todos, os anúncios indesejados que são inseridos no meio dos vídeos do YouTube, e não apenas no início dos vídeo, o que já é chato pra cacete! Anúncios dos aplicativos de rádio da internet, que se declaram antes de iniciar o streaming da estação escoilhida...

Não bastassem os anúncios que temos que engolir nos chamados "intervalos comerciais" - que só ali deviam existir! Anúncios não solicitados são como conselhos indesejados: ninguém os quer, ninguém precisa!!!

Estas campanhas podem estar causando efeito justamente oposto ao que almejam, e em vez de criar empatia com consumidores satisfeitos, vão acabar por gerar repulsa em uma legião de consumidores frustrados, que não têm muitas opções de como sair desse oceano de lixo e poluição visual, sonora e mental.

O que nós, consumidores, podemos fazer?

BANIR!
BOICOTAR!
EMBARGAR!

Não compre nada que lhe meta um anúncio intruso na sua frente!
Abaixo os anúncios indesejados e não solicitados!
O consumidor tem o poder!

Sim, até que poderíamos ...

Tuesday, April 07, 2020

Sonho, logo existo?

uma fábula chinesa


Tem uma fábula chinesa que diz que em uma noite, Zhuang Zhou(*) - Zhuangzi para os íntimos - sonhou que era uma borboleta, a voar alegremente pelos campos, e que quando acordou, questionou se realmente era Zhuangzi que acabara de sonhar ser uma borboleta, ou se era uma borboleta sonhando ser Zhuangzi...

Raul Seixas, letradíssimo no Caminho do Tao, no Buda, em Confúcio, em Krishna, Jesus Cristo, Alex Crowley e o diabo-a-quatro (literalmente), registrou a fábula na canção "O Conto do Sábio Chinês", no LP "Abre-te Sésamo" de 1980. Belíssima!

O argumento do sonho sugere que o ato de sonhar fornece evidências de que nossos sentidos, na qual tanto confiamos para distinguir realidade de ilusão, não são totalmente confiáveis, e qualquer interpretação que dependa dos sentidos, deveria no mínimo ser cuidadosamente examinada antes de concluírmos se é de fato realidade!
-- Como assim? Tudo o que vejo, ouço, sinto e percebo não é real? Ou pode não ser real?

-- Pois é... louco né?
Se fosse hindu esta fábula, provavelmente traria a questão da não-dualidade embutida, e talvez explorasse a possibilidade de Zhuangzi e a borboleta serem um só!

Deixo aqui um haiku/tanka(**) com a minha versão zen-budista/vedântica do dilema:
borboleta não viu Zhuangzi
Zhuangzi não viu borboleta:
nem borboleta, nem Zhuangzi -
          observador
          que a tudo observa.


(*) Zhuang Zhou foi um influente filósofo taoista chinês do século IV a.C. Muitas vezes conhecido como Zhuangzi (/ˈʒwæŋˈziː/; Chinese: 莊子) ("Mestre Zhuang"), viveu por volta do século IV a.C., durante o período dos Reinos Combatentes, um período correspondente ao cume da filosofia chinesa, o período das cem escolas de pensamento.

(**) Haiku (俳句) é uma forma curta de poesia japonesa de 17 sílabas poéticas arranjadas em versos de 5 - 7 - 5 sílabas. O Tanka (短歌) é outra forma curta de poesia japonesa formada por 31 sílabas poéticas arranjada em versos de 5 - 7 - 5 - 7 - 7 sílabas. Além da forma, elas também diferem no tema; tradicionalmente o haiku trata de temas ligados à natureza, enquanto o tanka é mais genérico. Outra curiosidade é que o haiku originou-se do tanka. Nesta minha interpretação da fábula, ofereço as duas formas - o haiku (3 primeiras linhas) e o tanka (2 últimas linhas adicionais).