Sunday, October 16, 2011

A Adega de Edgar


Já era tarde, mas mesmo assim Edgar resolveu abrir outra garrafa de vinho. Costumava dizer que o vinho vinha na dose certa para a pessoa, em garrafas de 750 mililitros. Dizia isso para justificar o fato de que, ao abrir uma garrafa, Edgar a terminava, sem problema algum. E ainda ficava bem... seus amigos é que ficavam impressionados e sempre comentavam, "Nossa Edgar, você tomou a garrafa todinha!" "Claro, ela vem na dose certa...", respondia. Já houvera ocasiões em que sozinho entornara 2 garrafas... em outras ocasiões - mais raras, é verdade - Edgar entornara três! Um recorde, se é que podemos chamar de recorde, já que Edgar particularmente não se interessava por isso.

Levantou-se com dificuldade do sofá, derrubando o controle remoto do DVD, que ao cair no chão, acabou por pausar o filme que Edgar assistia, "Encruzilhada de Bestas Humanas", de Rainer Werner Fassbinder. Edgar comprara este filme por recomendação de um falecido amigo escritor, Dario... Dario cometeu sucídio dias após ter assistido ao filme. Antes, porém comentara sobre uma lenda urbana ao redor do filme, um casal cuja garota havia matado o namorado, fanático por Fassbinder, após uma sessão desse filme... segundo Dario, saira na imprensa na época, Laura e Gabriel, mas Edgar não se lembrava. Na verdade Edgar não se interessava muito por cinema, mas depois do suicídio do amigo desenvolveu uma fixação por suicídios e suas causas, tentando entender o que passa na cabeça de um suicida. Por isso comprara o Encruzilhada...

Sacou do saca-rolhas, daqueles antigos que só garçons em bodegas de vinho usam. Detestava os saca-rolhas encrementados, que você apoia a garrafa sob eles e só abaixa o sacador... pronto, a rolha é mecanicamente arrancada numa precisão indiferente. Não Edgar, um verdadeiro apreciador de vinhos! Essas coisas não passam de bugigangas para novatos, coisa da moda, dizia. Como tudo no mundo, consumir vinho também acabou por virar moda entre a classe média em ascenção, e cada um precisava, desesperadamente, apreciar mais do que o outro, e para isso gastam seu dinheiro sem valor em saca-rolhas maiores e mais sofisticados, em vistosos coolers, no maiores e mais sofisticados gabinetes para armazenamento... é a era do amadorismo, dizia Edgar! Hoje em dia, todo mundo pode comprar uma máquina fotográfica e brincar de fotógrafo artístico! Ou gravar um CD, fazer um filme... Youtube, MySpace, Facebok, e essa merda toda! Mas não Edgar. Edgar não era destes, e preferia investir seu valioso dinheiro em vinhos de qualidade, baseado em suas incansáveis pesquisas e leituras - o verdadeiro caminho para o conhecimento. Edgar acompanhava anualmente o desenvolver das safras francesas, nas regiões e terroirs de sua preferência. Para cada região tinha seus terroirs, em Côtes du Rhône, por exemplo, Edgar gostava do terroir Chateauneuf-du-Pape e Gigondas; em Beaujolais, gostava de Fleurie; em Bordeaux, Graves, Margaux, Pauillac, Pomerol e Cahors; em Burgundy, Chablis, Macon e Pouilly-Fuisse; em Languedoc-Roussillon, Corbieres, Fitou e Minervois; em Loire, Muscadet, Pouilly-Fume e Sancerre.

Edgar também apreciava os vinhos italianos, principalmente os da região de Veneto - Amarone della Valpolicella - Piedmonte - Barolo - e Toscana - Brunello di Montalcino. Os espanhóis também não ficavam para trás, Montsant, Priorat e Somontano, além de Navarra e Ribera del Duero. E seria injusto não citar os portugueses, que muito agradam Edgar, do Douro, Bairrada e Alentejo.

Baseados nestas informações todas, poderíamos dizer que Edgar era um apreciador de vinhos do velho mundo, e estaríamos corretos, mas o que não poderíamos dizer é que Edgar nunca se interessara pelo novo mundo. Edgar já esteve em feiras vinículas e gastronômicas na Argentina, no Chile, nos EUA, na África do Sul, na Austrália e na Nova Zelândia. Há coisas de qualidade, reconhecia, mas faltava algo... tempo, talvez.

Convêm dizer que, depois da primeira garrafa, o controle de qualidade de Edgar ficava prejudicadíssimo. Não só para o vinho, mas para tudo. Experiente bebedor que era, Edgar sabia que depois da primeira garrafa - geralmente um belo vinho - a seguinte deveria ser de qualidade inferior. Neste caso, as seguintes... O que Edgar buscava na quarta garrafa já não encontrara na terceira e tampouco na segunda! Não tinha mais nada a ver com apreciação de vinhos - era pura bebedeira!

Edgar se levantara para pegar o saca-rolhas antes memso de selecionar o vinho. Munido do saca-rolhas percebeu que lhe faltava a garrafa. Sentiu-se tolo, sorriu para si mesmo e caminhou em direção ao seu gabinete que comportava 52 vinhos. Por vezes Edgar se questionava se não era pequeno demais o gabinete. Pegou-se pesquisando gabinetes de 120, 240 garrafas, mas logo desistiu... algo dentro dele dizia para não comprar.

Cambaleante, Edgar abriu a porta do gabinete para horrorizado constatar que só lhe restava uma garrafa de vinho! Espantado e incrédulo - jurava que o gabinete estava com mais da metade, apenas uma garrafa atrás - e sem saber descrever exatamente o que sentia, Edgar pega a garrafa e tenta ler o rótulo, mas não acredita no que vê... ou pensa que vê: o lendário Château d'Yquem 1811, a chamada Safra do Cometa! Uma raridade de colecionador!

Ranzinza que era quando ficava um pouco alcoolizado, Edgar pragueja, "Mas que merda... vinho branco de sobremesa?!?". Além de não ser muito inteligente abrir um vinho bom depois da segunda garrafa, muito menos inteligente seria abrir um vinho cotado a 75.000 libras esterlinas - considerado o vinho mais caro do mundo! Edgar sabia não ter esse vinho em sua adega, mas atônito que estava, isso era apenas um detalhe.

Decidido a abrir a quarta garrafa de vinho, Edgar vai até o mercado da esquina e constata que a sessão de bebidas estava fechada - uma das muitas hipocrisias nos mecados locais, fechar a sessão de bebidas após as 22:30.

Volta pra casa sem opção a não ser abrir o Château d'Yquem, que conscientemente sabe não possuir! Na primeira tentativa de sacar a rolha, ela praticamente se desfaz! Edgar acaba de empurrá-la garrafa adentro, e munido de um coador entorna uma taça generosa do vinho, para constatar que o mesmo estava estragado!

Alucinado, e agora com uma necessidade alcoólica que já se tornou molecular, Edgar começa a revirar todas prateleiras em busca de algo alcoólico - qualquer coisa - mas nada! Nada restara, a não ser... Edgar corre para a área de serviço do apartamento e revira desesperadamente a dispensa que fica debaixo do tanque. "Onde... onde estará aquele litro de Zulu..."

Com o litro de álcool nas mãos, Edgar olha para os lados, sem jeito, como se quisesse se desculpar pelo seu ato... mas Edgar morava só, e aquela era só mais uma daquelas noites intermináveis das suas semanas, em que costumava alcoolizar-se na tentativa de acelerar os tiques e os taques do maldito relógio... sempre em vão!

Edgar corre para a cozinha aos cambaleios, protegendo o litro de Zulu como se sua vida dependesse dele. Pega um copo, dispensa água e gelo, despeja uma boa dose do álcool e o entorna! Faz uma careta de quem não gostou mas repete a dose uma, duas, três vezes!

* * *

Dona Marluce, a vizinha do 203, acorda de repente com um grito horrível vindo do apartamento ao lado - "É do apartamento do seu Edgar!" Veste sua camisola e quando abre a porta do corredor vê Juvenilda, a empregada de Edgar, passar correndo, ainda aos gritos!

Dona Marluce entra no apartamento de Edgar e depara com a cena: Edgar caído no chão da sala, a boca espumada, e uma garrafa de veneno de rato nas mãos. A porta da adega estava escancarada, e 33 garrafas de vinho estavam espalhadas pelo chão da sala. Ao lado de Edgar, 4 garrafas de vinho, 3 vazias e uma aberta, faltando apenas uma taça.

Dona Marluce recolhe todas as 33 garrafas e as acomoda em três sacolas. Antes de se retirar com as sacolas para o seu apartamento, senta-se no sofa, pega a taça abandonada praticamente cheia, olha contra a luz através do vinho branco e licoroso... pega a garrafa quase cheia e lê em voz alta, "Château d'Yquem, Lur-Saluces, 1811". Pensativa, dona Marluce matuta com seus botões, Chatô di quem? Saluce? Uai, será qui é daquela minha colega lá di Minas?" Dona Marluce dá um longo gole no vinho com o qual acredita ter algum tipo de ligação, e comenta, "Ô trem bão... docin, docin, esse vinzin!" Mete-o numa das sacolas e deixa a cena.

Wednesday, October 12, 2011

Excusez-moi mon anglais...


Curioso como certas expressões soam bem em certas línguas. Por exemplo, a expressão "excuse me my french". "Desculpe o meu francês" é uma frase usada para disfarçar palavrões. A frase é usada numa tentativa de se desculpar pelo uso de palavrões, sob o pretexto de as palavras serem parte de uma língua estrangeira, no caso o francês.

"Excuse me my french, but you are an asshole", ou "perdoe o meu francês, mas você é um cuzão." Soa bem, não? Esses ingleses... agora, será que os franceses, calmos e pacienciosos como são (!!), não têm uma frase do tipo? Aposto que sim, e deve soar algo como...

Encule vous!!! Excusez-moi mon anglais...

Monday, October 10, 2011

Esqueçam o que escrevi!


Com esta frase, Fernando Henrique Cardoso mandou às favas todo seu passado intelectual, em detrimento às novas doutrinas socio-econômicas a que ele, como Presidente da República, se submetia.

Passada a decepção, o que fazer? Queimar todos os livros de Fernando Henrique! Pois foi o que fiz, lá nos idos de 1997.

Minha grande dúvida agora é se quebro os discos do Bob Dylan! Sim, o grande Bob, o deus do folk pela sua música, o guru pela sua poesia e literatura, e agora também o virtuoso pela sua pintura... já era!

Depois de um show medíocre que assisti de Bob, em 2009 aqui em Dublin, onde Bob entrou mudo e saiu calado - já postei a descepção aqui - Dylantante - Bob não melhorou... aliás, parece que piorou, e os shows vão ficando cada vez mais distantes e irreconhecíveis... será de propósito?

O negócio é que Bob gostou da Irlanda... tanto gostou que dá 2 shows por ano! Ah, quanta inocência! Bob gostou dos euros que os irlandeses generosamente pagam para vê-lo: €60-€90! Para ver aquela merda que ele vem apresentando? Pois lá vem ele de novo, agora com Mark Knofler tira-colo, tentando dar mais credibilidade ao desacreditado ato...

Só digo uma coisa: vai pra casa Bob, vai... e aproveita a aposentadoria!

Sunday, October 09, 2011

O Exercício da Tradução


Na TUDA eu exercito duas de minhas paixões, línguas e poesia - aliás, justo dizer que minha paixão por línguas veio através da paixão pela poesia. Era uma impressão de me dava, e ainda me dá, ao ler poemas traduzidos de outros idiomas, que eu poderia fazer diferente... não melhor ou pior - o que só se descobre depois da empreitada - mas diferente.

Essa sensação me levou aos exercícios de tradução, ainda muito cedo, nos meus vinte e poucos anos, e inglês e espanhol eram as línguas-fonte na época. Tais exercícios foram despertando em mim um prazer em decifrar - não é isso a tradução? E decifrando fui me acercando cada ve mais das chamadas "soluções poéticas" para os textos, fugindo da rigidez do sentido literal para valorizar características poéticas (rima, métrica, ritmo) e culturais (contexto social, cultural e antropológico adaptados à língua-alvo).

Tal exercício acabou por despertar em mim a curiosidade por outras línguas. Além do inglês e do espanhol, o francês e o italiano rapidamente passaram a fazer parte do meu repoertório, e mais tardiamente - e arduamente - o japonês (que consequentemente me trouxe o chinês) e o russo (que me proporcionou o contato com as línguas do alfabeto cirílico, como o bielorrusso e o ucraniano).

Com a minha mudança para a Europa meu horizonte se expandiu ainda mais! Aqui passei a ter contato direto com diversas línguas e culturas, e passei a entender melhor as fronteiras linguísticas e culturais - ou a falta delas - entre línguas próximas, de países vizinhos ou no próprio país; os diversos idiomas do reino da Espanha, os diferentes tipos de italiano falados Itália adentro, as particularidades do português e suas sub-línguas anciãs, os diversos dialetos alemães, o francês crioulo, o contato com outras línguas indo-européias de base cirílica, como o búlgaro, o sérvio, o mongol, o uzbeque e o checheno, etc, etc, etc...

Aí me perguntam:
-- ... mas você fala Polonês?
-- Não, respondo.
-- Você fala Basco?
-- Nem em sonho...
Aí, com aquele ar de desconfiança, disparam:
-- Então como você pode traduzir do Polonês, do Basco, e dessas tantas outras línguas que você não fala?
-- Simples... basta ter em mãos as ferramentas do meu famoso Kit básico para traduzir poesia de uma língua que você não fala ou não domina (língua-fonte) para uma língua que você domina (língua-alvo) !
Confira:
    Essenciais:
  • Um bom dicionário língua-fonte - língua-fonte
  • Um bom dicionário língua-fonte - língua-alvo
  • Um bom dicionário de verbos da língua-fonte
  • Um compêndio gramatical da língua-fonte
  • Desejáveis:
  • Conhecimento social e cultural do país, da época e do autor
  • Alguém que fale a língua-fonte para trocar idéias
Munido disso tudo, camaradinha, basta muita paciência e adoração por quebra-cabeças e decifração de códigos... e voilá!

Manda lá pro TUDA que eu publico!!!

Minhas traduções no TUDA:
http://tuda-papeleletronico.blogspot.com/search/label/EMtrad

Friday, October 07, 2011

Deu lá, no blog da Atelie...


Em entrevista ao Blog da Ateliê, o tradutor, músico e poeta falou da relação de “amor e ódio” entre Joyce e Dublin. Eduardo Miranda chegou à final do Concurso de Tradução Bloomsday 2011 e publicou sua tradução na revista eletrônica TUDA.

Como foi seu primeiro “encontro” com a obra de James Joyce?
Joyce me chegou primeiro através de Ulisses, ainda muito jovem – praticamente ilegível para mim na época. Depois fui cronologicamente retrocedendo: Retrato do Artista Quando Jovem, Dublinenses, e depois a poesia… mas foi em Dublin que tive a oportunidade de me envolver mais com a literatura e a cultura irlandesa – inclusive com a língua irlandesa – e consequentemente com James Joyce. Foi aqui em Dublin, durante a comemoração dos 100 anos de Ulisses,  que pude percorrer o caminho que Leopold Bloom percorreu, no mesmo passo que o livro.
Fale um pouco sobre a obra e vida de James Joyce, segundo a sua experiência.
Na verdade foi depois da minha mudança para Dublin por motivos de trabalho que vim a me interessar mais pela obra de Joyce – e tudo em Joyce é Dublin! E entender essa relação de amor e ódio foi um desafio… Joyce deixou claro em vida que não gostava de Dublin. Stephen Joyce, neto e curador da obra de Joyce, faz questão de afirmar que seu avô não gostava da cidade. Tampouco ele simpatiza com Dublin, e desaprova toda tentativa de citar a obra do avô, seja para turismo, nomeação de monumentos, ou mesmo comemorações. O único lugar onde é permitido citar a obra de Joyce é no James Joyce Centre, durante as comemorações do Bloomsday, festival que acontece todo dia 16 de Junho e que comemora as aventuras de Bloom.
Como é traduzir James Joyce?
Primeiramente acho que todos os que se submeteram ao desafio de traduzir o Finnegans Wake – e não só os finalistas – já são heróis pela própria ousadia. Para mim foi uma tarefa trabalhosa, tanto que consumiu quase todas as minhas horas livres de uma semana inteira! Mas ao mesmo tempo foi excitante e divertida… uma aventura e tanto! E o fato de morar em Dublin e de ter um certo conhecimento da língua irlandesa – mesmo que parco –  fez com que eu me sentisse, de certa maneira, mais próximo dos contextos joyceanos, e acho que acabou ajudando um pouco a transposicão multi-dimensionais do texto… além, é claro, de um pouco de intuição e muita poesia!
Fale um pouco de você e do seu trabalho.
Não sei se posso chamar de trabalho, no sentido convencional da palavra. É mais como um hobby, só que levado muito à sério… extremamente! Mas o tempo é que não ajuda muito. Como tenho o meu trabalho na área de Tecnologia da Informação, acabo dedicando apenas o tempo que sobra às outras atividades. Trabalho e família vêm primeiro e, às vezes, o que sobra não é muito. Tento ser constante na TUDA, uma e-zine de poesia, literatura e arte que publico mensalmente, já há 3 anos. É lá que publico minhas traduções. Minhas poesias, meus contos e outros textos podem ser acessados à partir de um “portal” que mantenho, o edotm.info. Já na música, tenho um projeto experimental e multi-instrumental, à distância, chamado The Virtual EM3, e uma banda real, o Wellfish. Conforme o tempo permite, vou “trabalhando”….
Eduardo Miranda

Confira no blog da Ateliê: http://blog.atelie.com.br/2011/09/eduardo-miranda-respira-james-joyce-em-dublin/