Jeremia
Jeremia não escrevia. Jeremia pouco lia e nada escrevia. Isso durante onze meses e 3 semanas do ano. Sabe-se lá o que acontecia com Jeremia que em épocas natalinas, mais precisamente na semana que antecedia o natal, se dava a escrever, compulsivamente! Embora possa parecer bom, para Jeremia era um tormento! Jeremia escrevia para por para fora... por para fora todo aquele sentimento que, de repente, brotava em seu peito, e que ele chamava de sentimento anti-natalino, que era o oposto do espírito de natal.
Quando criança, Jeremia perguntara ao pai porque não se chamava Jeremias, e o pai respondeu “Pruque tu é um só”.
Assim era o natal de Jeremia: onde as pessoas sentiam amor, Jeremia sentia ódio, onde as pessoas sentiam compaixão, Jeremia sentia desdém, onde as pessoas sentiam solidariedade, Jeremia sentia indiferença. Mas quem conhecia Jeremia sabia que ele era uma pessoa boa. Por onze mêses e três semanas do ano, Jeremia era um exemplo de amigo, colega, vizinho. Mas quando chegava aquela semana, Jeremia se transformava... ficava desesperançado, amargo, frio, indiferente, e enquanto as pessoas se confraternizavam, Jeremia se isolava. Se isolava e escrevia Jeremia. Compulsivamente.
De pequeno Jeremia não entendia muito das coisas. Um dia perguntou para mãe se o seu Manuel da padaria havia lhe batido. A mãe estranhou e disse que não, por quê? Jeremia disse que depois que seu Manuel chegou e entrou no quarto com mãe, mãe não parou de gritar. Naquele dia Jeremia aprendeu que voltar da escola mais cedo com dor de barriga significava uma surra.
Escrevia Jeremia, Jeremia escrevia. Toda aquela amargura, tristeza, desesperança... tudo ia na escrita de Jeremia, que não via a hora disso tudo acabar. Jeremia escrevia sobre a ganância das pessoas e sua conduta moral, sobre seu caráter, sua falsidade...
(...)Nos textos, Jeremia, que nunca escrevia, punha para fora essas coisas, coisas de pai, mãe e família, que não lembrava direito, pois depois que o pai havia se matado, Jeremia muito jovem, passara o resto da infância e adolescência de orfanato em orfanato... vários. Dos irmãos Jeremia não sabia – só sabia que cada um teve um destino diferente.
Mas se são de solidariedade os tempos, de compaixão e amor ao próximo, por que não realmente pregamos esses sentimentos? Por que ainda viramos as costas para um pedinte, para depois sentirmos pena? Se não adianta dar esmolas, esmolar também não vai fazê-lo nem mais nem menos miserável, ele provavelmente sabe disso, na própria pele! Mas aquele trocado pode salvar-lhe o dia – seja para um prato de comida, seja para um trago de pinga. Quem aí vai julgar?!? O que incomoda mesmo é a presença... ah, se pudéssemos simplesmente eliminá-los! Sim, a eliminação é possível, mas não como faz a polícia de certos Estados, e sim de maneira humana! E sua arma, camarada, é a consciência – igualmente toda a força e toda a fraqueza do homem. Por isso, enquanto estiver se empaturrando de perú e cerveja, não precisa pensar que tem gente remexendo o lixo e morrendo de fome, não... seria muita hipocrisia, e de hipocrisia a humanidade já está cheia. Quando estiver enchendo o rabo de perú, desejando saúde, paz, prosperidade e harmonia para os seus amados amigos e familiares, não precisa nem se esforçar muito... apenas sinta, de verdade, e carregue esses sentimentos ano afora – eu sei, é difícil, mas garanto que vai lhe doer menos...
Geralmente Jeremia queria ver o natal passar rápido, rasteiro, mas ultimamente a coisa vinha mudando, ano após ano! Jeremia percebia que quando escrevia, punha para fora sentimentos alheios aos outros, mas também percebia que, fora da época natalina, quando não escrevia, sentia sentimentos igualmente não compartilhados... E quando concientizou-se de que isso era mais penoso do que escrever, Jeremia deixou de querer que o natal não chegasse, para desejar que o natal não acabasse. Se ele pudesse, escreveria sem parar, numa espécie de manifesto sobre essa hipocrisia toda que alimenta as pessoas, e o próprio ciclo da vida.
Estranha figura era Jonatã, o pai de Jeremia. Não chorava, não sorria. De nada reclamava, e por ninguém sentia. Diziam que ficara assim por causa de Eleonora, mulher infiel. Não teve coragem de largá-la por causa dos filhos Jacira, Jeremia, Jildete, Joel, Juvenal e Agripina. Talvez não tanto por causa de Agripina, filha bastarda, que mais bastarda ficou quando a mãe morreu dando a luz a ela. Culpa Agripina não tinha, mas na cabeça de Jonatã, a filha bastarda era sua única desculpa.
Embora Jeremia não tenha conseguido conspirar com o universo e fazer com que o natal não acabasse, conseguiu um trato melhor: manter aquela amargura, aquele desprezo, aquele ceticismo, pelo resto do ano dentro dele, e agora só escrevia Jeremia... enlouquecido, Jeremia não comia, não bebia, não falava, não dormia... Ficou conhecido como o louco que escrevia.
Quisera Jeremia que o que escrevia mudasse o que toda gente sentia, mas Jeremia sabia que não passava de utopia, e assim escrevia Jeremia, escrevia, e apenas escrevia...